“No meio do caminho tinha uma
pedra.”* o poeta repete isso à exaustão.
Para mim essa insistência era com a existência e não com um simples caminhar.
Diferença entre existir e viver. A aparência de ingenuidade do poema revela
profundezas do sentimento de mundo num outro verso sintomático: “nunca
esquecerei desse acontecimento no meio de minhas retinas tão fatigadas.”
Tinha uma pedra no meio do
caminho da civilização. Um rompimento com o que poderia ter dado certo. Eu acho
que foi esta pedra o que em muita gente matou ou feriu a afetividade para com o
outro. Alguns até consigo mesmos. Em algum momento ou ao longo da história a
afetividade foi se distanciando ou reduzindo-se a pequenos grupos e deixando de
ser universal. Ou esta interrupção afetiva foi fruto amargoso do próprio
processo civilizatório? “Não sei, só sei que foi assim”, como diria um
personagem do Suassuna**.
Lembro-me do tempo em que eu
bebia. Bebia compulsivamente. Fazia tudo o que era obrigação mas para agüentar
o peso da vida e a inquietação fervilhante eu tinha que aplacar a minha
loucura. Minha bengala para prosseguir leve era a bebida. Chutando umas pedras
com um pé e dando um teco em outras com a ponta da bengala. Onde começou a
compulsão? Também não sei, só sei que nisso perdi muita oportunidade de exercer
minha a afetividade. Já não bastava a vida de competição para tomá-la de mim?
Já não bastava a correria para uma sobrevivência digna, para uma carreira de
sucesso, para a construção de um lar? A gente tem que sair tirando muito
obstáculo do caminho. Comigo foi assim durante muitos anos. Em estado alterado
eu achava que me soltava mais, sentia-me mais sensível. Tanto para o afeto como
para criar desafetos, eis um problema. O tal obstáculo muitas vezes eram
pessoas.
E com os outros? Cada um não tem
sua forma de buscar a justificativa de sua existência através do slogan
universal que atende pelo substantivo imponente “felicidade”? E cada um não
trava uma luta interior de alguma forma? Droga! Drogar-se é o mais comum. Eu vou
generalizar o que considero uma droga: enfurnar-se no trabalho, fugir dele,
tomar medicamentos, beber, fumar, dopar-se de cosméticos, roupas e acessórios
em demasia, comprar coisas compulsivamente, usar drogas consideradas ilícitas,
comer demasiadamente para aplacar uma ansiedade que não se explica. Poucas,
pouquíssimas pessoas conseguem levar uma vida de cabo a rabo isentas de uma
drogada. Há espíritos mais e espíritos menos inquietos com o peso de sua existência. O que cada um faz
para carregar a sua mala é que nos torna mais ou menos complexos, tanto para
dentro de nós mesmos ou para as pessoas em nossa volta ou para o mundo. E essa
droga para mim é a substituta da afetividade coletiva que se perdeu no meio do
processo civilizatório, no meio da ilha que se formou em torno de cada um ou de
cada grupinho. A droga como camuflagem, a droga como alteridade, a droga como
fuga.
A indústria de medicamentos
negará minha afirmação. A de bebidas negará, a indústria de tabaco negará. A
indústria da beleza negará. A indústria da dieta negará. O traficante me
condenará à execução, mas a afetividade coletiva é o anti drogas mais eficaz
que pode existir. A vida quando partilhada é mais fácil ser suportada, menos
provocadora de doenças inexplicáveis mesmo que tratáveis a custo alto e sucesso
incerto. Estar de bem consigo mesmo requer que tudo a sua volta esteja bem, ou
pelo menos não haja muito obstáculo. E os obstáculos ao bem estar são oriundos
de pouco afeto humano. Não é preciso sair por ai como aquele antigo beijoqueiro,
abraçando e beijando todos que cruzarem o nosso caminho (se bem que ele tinha alvos específicos a quem dedicar seu afeto,
estava mais para caçador de fama do que disseminador de afeto. Porém seu gesto
era uma bandeira levantada em favor de aproximação humana carinhosa). A
tolerância, a generosidade, a educação nos modos, o respeito ao diferente, a
aceitação, a tolerância, a não indiferença, a não discriminação, a diminuição
do egoísmo, já são atos de afeto universal. Em qualquer lugar do planeta que se
for esses gestos são edificantes. Um edifício humano onde a taxa condominial
para a conservação seja a distribuição eqüitativa de afeto. Estamos infestados
de amor. Ligue e tv, novela, filme, programa de auditório, vá ao cinema, leia
poesia, romance, assista a uma peça teatral, ouça uma música e preste atenção
na letra. Vá a um concerto ao ar livre, a um evento de multidões. Verá que a
catarse coletiva é expressa de forma a buscar reconhecimento e afeto. Pode não
ser dito, mas se vê nos olhos, se fala, se buscam movimentos uníssonos, de
igualdade ainda que momentânea. Isso é desrepresamento de afeto que não é
estendido para os demais dias da vida de cada indivíduo. O ser humano no mais
fundo de sua essência está em busca de amor.
* No Meio do Caminho Tinha Uma
Pedra - Drummond
* *O Auto da Compadecida – Ariano
Suassuna